E estava tudo muito bom. Estava tudo muito bem.
Até que a tragédia se instaurasse sobre nossa casa, e a miséria sob nossos pés.
Até que o ar se tornasse turvo e nossas bocas ficassem secas. Até que nossos corpos se movessem arrastados. O não-movimento sendo requisitado em silêncio, de bocas mudas. Nossos corpos – pernas e braços – túrgidos. E nem precisávamos dizer nada.
Estava tudo muito bom. Estava tudo muito bem.
Até que o céu ficou cinza. A nossa casa ficou cinza. A nossa roupa ficou cinza. As pinturas ficaram cinzas. As paredes. O carro. A tv. O jornal. As crianças. Os tapetes. Os jogos. O abajur. O ventilador. A lixeira transbordado lixo. O computador. A carta de baralho. A mesa. Os móveis. Os enfeites. Os porta-retratos. A geladeira. Os copos no armário. A moeda esquecida em cima da mesa de canto, atrás do vaso chinês. Cinza.
Estava tudo muito bom. Estava tudo muito bem.
Até que o drama veio e me encurralou, adentrando minha pele, como um suor invertido, me fazendo arder em febre – uma febre pesada, cheia de nexo dos dias modernos. Até que meus sapatos adquiriram plataformas de chumbo, impossibilitando-me o prosseguir.
Estava tudo muito bom, sim, estava tudo muito bem.
Até que a vida de um se desdobrou em duas, e caminhou por dois caminhos diferentes, só se encontrando – e olhe lá – nas noites de insônia, em que nem Valium dava mostra de seus efeitos miraculosos e enzimáticos. A hora do encontro consigo mesmo nas noites mal dormidas, moribundas, reflexivas, lembradas somente an passan.
Tudo muito, muito bom. Muitíssimo bem.
Até que o ar solidificado e metaforizado em desastres desabou por cima de nós, nos faltando deveras o próprio ar, que antes era só ar, e agora lhe falta nitrogênio, oxigênio, e outros gases: falta-lhe organicidade. Até que tudo o que era orgânico se transformou em inorgânico somente para não ter de dar satisfação à nossa existência. Até que nos partimos em mais de um somente por desgosto; até que essa angústia e aflição se tornassem parte integrante da nossa efêmera, porém presente situação. Até que ficássemos estagnados dentro de nós mesmos, esperando algo acontecer, ouvindo o barulhinho metódico do relógio a ressoar - tic-tac, tic-tac, tic-tac...
É, estava tudo muito bom. Estava tudo perfeitissimamente bem.
11 comentários:
O teu texto está muito filosófico. Muito bom está a forma como expressas o teu sentir.
Quando pensamos que está tudo bem, puz! Surge uma metamorfose, uma mudança de planos vitais, mas por vezes é bom, aprendemos e começamos de novo a viver!!
Gostei o texto!
Muito obrigada pelas visitas…é sempre bem vinda!
Beijo
Bom fim de semana
Muitas vêzes podemos ficar perfeitíssimamente bem dentro do caos , sabia? "Alguns" caos são tremendamente necessários! Grande beijo, linda...e , cada vez mais admiro teu expressar...:)
Me lembrou uma música...
"Quando tudo parece não ter lógica,tiros de amor,bombas de amor,guerra de amor.Qualquer paranóia vai virar prazer de viver..." Jota Quest.
BjaÇO!
Belo texto apesar de trágico.
Ora, visto que tudo é cinza, pois que seja então como a Fénix e renasça da própria cinza.
Beijo.
É, de uma hora para outra, as coisas mudam....assim é a vida!
Beijo
Momentos cinza levam-nos a fazer escolhas. Continuar ou romper? Difícil situação, difícil resposta e difícil decisão.
Lindo texto.
O seu texto está muitp bpm, muito bem!
E viva a literatura!...
Abraços
Quando o caos se instaura não há mais o que fazer...
juntos, eu diria, rs.
Beijo.
Arrasou Bina. Como sempre, aliás. O conformismo, a ausência de arco-íris em nossas vidas monótonas, seguras, nos impossibilita de ver o cinza tomando conta de tudo.
Meu último post no Prosa na veia tem algo que expressa o teu sentir. Percebi isso.
Beijos.
P.S: E agora n errei o nome!
Ô mulherzinha lerda essa que sou!
Mais uma vez, desculpe a falta de atenção. É que sempre fui muito ruim com nomes. Coisa de professora que tem centenas de alunos e precisa, mas n consegue, lembrar o nome de todos. Acho que isso me bloqueou.
;)
Fantástica forma tua de dizer humanidades...boquiaberto fiquei com a maestria da tua pena...
Doce beijo
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