O amor é sabidamente o mais belo dos sentimentos. O amor é o que dá ritmo e balanço às coisas. Pelo amor o mundo se move, as ações acontecem. A inércia se torna quase impossível. Qualquer tipo de prostração passa a inexistir, e a indiferença passa a ser impertinente. O amor não tem nem sinônimo ao qual possa ser comparado, pois ele é único e seguro de si. Ele é mais que a beleza - ele é a beleza eterna que não pode ser vista, só sentida. Ninguém impede o amor de agir, pois é ele quem embevedesce nossa existência da alegria exacerbada - uma alegria quase eufórica - responsável pela continuidade dessa existência. Pelo amor não somos seres estagnados e embriagados da monotonia infame. Ele une e re-une todos os lados, as partes sem vida e sem nexo de existir. Liga tudo num pulcro e cuidadoso bailar de sorrisos e vontades.
Esse conto é sobre um menino que respirou a noite como nenhum outro; que absorvia pelos pulmões não só o nitrogênio do ar, mas a melancolia bela que a noite reflete; que sempre ansiava em desatino pela negritude costumeira das noites.
Fora abandonado desde seu nascituro, e não se sabe como ou com qual sorte - talvez azar – sobrevivera. Seus miolos não estavam imbuídos de qualquer sinal de civilidade, porque não a conhecera. Nem se poderia dizer que era solitário, pois desde sempre fora assim, o contrário é que era desconhecido. Não sabia sequer pensar. E talvez, houvesse mesmo um esforço contra essa natureza explicitamente humana. Não conhecia as palavras, não falava, não emitia sons. Nem tinha um nome pelo qual fosse chamado. Seus pensamentos eram simples instintos. Seus sentimentos, os mais primitivos e óbvios. Mas ele estava satisfeito, por ora, com essa condição de somente existir para sentir, sem que fosse necessária a utilização de qualquer meio meramente mediador.
Só respirava com paz de verdade à noite. Exaltava o negrume da escuridão, pois, este negrume era seu companheiro e cúmplice; e quanto mais intensa fosse essa negrura, maior era sua satisfação, pois era o momento único em que ele podia contemplar a causa de sua única e verdadeira felicidade: a lua - aquela grande massa pálida e brilhante que paira nas alturas, deslumbrante. Desde sempre a amou e desejou tocá-la, abraçá-la. Desde sempre se embeveceu da sua luz sutil e afável, pois era a única sorte que a vida havia lhe dado. Desde sempre a aspirou com aflição. E aspirou em silêncio, no abandono do tempo, sem emitir um urro sequer de agonia, de dor ou de alegria. Um amar calado, porém sofrido. Mudo. Inaudível. Ninguém mais que ele sabia como doía a alegria folgada e espalhada do sol. Os dias ensolarados se arrastavam lentos. A sensação de ardência na pele e no peito eram contínuas. Seus passos sob a luz do sol eram pesados, secos, sem vontade. Sua face demonstrava seu descontentamento e sua dependência da palidez da lua. Seu desejo era seu algoz. Sua vontade era pungente e maldita, porque amargava e contraía o coração sem apresentar aparente ou possível solução.
Passava suas noites em tão alto despenhadeiro, que até sua respiração era difícil, dada a condição rarefeita do ar. Porém seus pulmões não reclamavam. Todo seu corpo vibrava com a visão da lua, que reinava no céu descorada como gesso. Cada célula, cada glóbulo movente não se atreveria a atrapalhá-lo durante a apreciação de sua amada. Nos píncaros, durante a negridão costumeira das noites, ele chorava mudo, com a cabeça voltada para o alto, admirando a beleza rotineira dela, enquanto o mar gritava e se jogava furioso lá embaixo. Porém sua vontade estava longe de ser contemplada, pois a lua continuava a milhas de distância. Ela permanecia inalcançável e intocável.
Numa noite qualquer, no meio da volúpia de seus pensamentos acerca de seu pingente brilhante, decidiu que subiria ao seu encontro. Numa confusão de ânsia e vontade, começou a juntar pedregulhos que encontrava ao redor, empilhando-os uns em cima dos outros. E cada vez que subia no monte pedregulhos, esticava a mão e junto todo o corpo, numa tentativa nem um pouco lúcida de alcançar a grande pérola lampejante. Cada vez que falhava, era como se seu coração se dilacerasse e sangrasse desenfreadamente por dentro. Tamanha era essa dor, que se soubesse ou fosse capaz, grunhiria tão alto, que deixaria de ser uma sombra qualquer e desconhecida nesse mundo.
Incessante e continuamente, o menino voltava e recolhia mais pedras, terra, e galhos que pudessem servir na sua escalada ao Terreno Divino. O menino nunca, em nenhuma dessas noites, havia abaixado a cabeça um instante sequer, tanto que seu pescoço já pendia levemente para cima, mesmo durante o dia, devido o costume. Recolheu tudo o pôde, e pôs-se a subir, subir e subir. Galho por galho, pedra por pedra, cada grão minúsculo de terra passando por entre seus dedos. A infindável ânsia de chegar ao cume. A respiração acelerada. Os batimentos cardíacos exageradamente pungentes no momento que antecede o ápice. Chegou ao topo. Esticou seu corpo. Com mais força. Mais. Mais. Estendeu seu braço. Sua mão abriu e fechou num movimento rápido e afoito. Nada. Deixou seu corpo cair numa insatisfação dilacerante e desabou ao chão com sua carne flácida. Teria urrado pela primeira vez se não estivesse anestesiado pela sensação de desespero e fracasso.
Lá de cima, pela primeira vez, imóvel no chão, ele olhou para baixo. Essa noite, contrariando todas as outras, o mar se encontrava numa paz imperturbável. Estava escuro e a água cristalina e mansa exibia a castiça figura tão almejada. Lá de cima ele admirou sua amada a exibir sua face mais impecável, mais exímia e especiosa do que nunca nas águas mansas daquele oceano negro.
Não teve dúvidas. Nem sequer pestanejou. Lá de cima ele mergulhou ao seu encontro.
Voou como um louco, num frenesi intenso, abrindo e fechando os braços estendidos, num movimento que ensaiava um abraço, até o momento que seu epitélio tocou as águas inodoras do oceano.
Lá, imerso no oceano, seu corpo continuava a afundar algumas centenas de metros, iluminado apenas pela luz de sua senhora, a lua.
Seus olhos fecharam-se quando ainda estava sua boca num último e permanente sorriso, doce, admirando a gélida água noturna em tons de prata. Seus braços permaneceram fechados, envoltos ao próprio corpo.
11 comentários:
O menino queria abraçar a lua porque era um sonhador. Se quisermos conquistar as nossas ambições, se nos queremos realizar, temos todos que ambicionar abraçar a lua. Isto é, querer o impossível para conquistar o possível.
Gostava de ser esse menino, acho que todos nos sentimos assim em alguma altura da nossa vida.
Beijos...
ps: obrigada pelo elogio (tou a sorrir)
Fabuloso o texto....
Que entrega sublime ao além...
A lua ainda abala corações.
bjgrande
foda! foda foda foda foda! muito bom mesmo. deveria ser ilustrado.
ah eh, e sobre teu comentario. mesmo que o desamor doa (jah que além de ser amado é também preciso amar) o lado bom (o único) das relações apáticas e sem alma é que acabam por se "sacudirem" (hahahaha) sozinhas.
"Não é verdade que o amor te torna cego. O amor torna-te sábio"
beijo e boa semana
Encontrei muito de mim nesse menino... eis o poder das histórias, falarem de nós, sem saberem quem nós somos...
Beijos.
Nossa, que texto lindo, Bina!
Lembrou-me um pouco, guardada as devidas proporções, daquele livro "O Perfume".
Beijo
Bina é lindo este texto, todos temos um bocadinho desse menino na nossa alma, vivemos em sonhos e construimos castelos no ar... até que um dia despertamos, e esse despertar pode nossa alma matar...
Beijo
esse menino um bocadinho de nós...
abrimos os braços AGARRAMOS a vida e sonhamos!
Soltamo-nos dentro....
Lindo conto... parabéns...
Um olá do outro lado do oceano
Atitude de entrega a do menino , e quem poderá julgar impensada? Praticamos esse "abraço a lua"cotidianamente através das nossas paixões, nossos afetos.Correção: apenas alguns privilegiados fazem isso,não todos...beijão e de novo, Parabéns.
Menino amante apaixonado e delirantemente apaixonante
Lua bela, amada, intangível.
Insensível.
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