A sombra (conto)
Era sol de meio-dia. A brisa quente fazia com que minha vista por vezes ficasse como que embaçada. Eu andava, e andava, mas parecia não chegar a meu objetivo, que em contrário, parecia ficar mais distante a medida em que o tempo passava. O ar em sua excelência bastante parecia sonolento. A brisa era quente e repousava sobre a pele dos animais que por instinto se esgueiravam pelos cantos que guardavam ainda algum ar mais fresco.
Conforme o sol ia mudando de posição, eu ia notando uma sombra se formando aos meus pés. O sol se movia e ela aumentava, de forma que cada vez mais seu formato se assemelhava ao meu.
Eu continuava andando e a sombra cada vez mais formosa aos meus pés. Comecei a notar severas semelhanças à minha pessoa: o jeito de balançar o corpo enquanto deambulo, o jeito do cabelo batendo ao vento, os braços balançando junto ao corpo.
Sim, agora os minutos se passavam e eu podia ver melhor. O sorriso da sombra era o meu, o corpo, os trejeitos - tudo meu. E enquanto ela tomava mais forma, eu me esforçava mais e mais para respirar. Porque agora a brisa quente parecia quase intragável. E quanto mais me faltava o ar, mais saltitante ficava a sombra. A sombra andava, sorria e falava como se nunca tivesse sido outra pessoa se não eu. Sempre eu. E a essa altura, a sombra já era gente. Gente assim, de carne e osso. E a minha vista, essa já parecia não me obedecer. O asfalto quente dava a impressão de dançar na minha frente, e eu desejei estar em casa. Tontura.
A sombra, essa era eu: desmoronava facilmente como eu, sofria de insônia como eu; tinha horror a cutucadas como eu; fugia da água de vez em quando; falava mal dos outros de vez em quando; calculava os movimentos de vez em quando; contava vantagem de vez em quando; fazia de conta de vez em quando; era desonesta de vez em quando; e não falava a verdade quase sempre.
A sombra era eu, e quão horrível era ser eu! A sombra era um retrato caricaturado de mim mesma. Um retrato horripilante de ser. Tentei voltar a mim. O ar não entrava, e a sombra continuava a perambular como se não pretendesse mais voltar.
A sombra tinha vida e quem não mais vivia era eu. Me sentia completamente feita de matéria abstrata. Estava fraca e desorientada, hirta e tesa. Precisando me agarrar a um corpo de verdade para me movimentar, pois a essa altura a sombra era eu.
Resolvi acabar com a alegria infame da sombra, e para isso juntei todas as minhas forças numa puxada de ar só. E puxei o ar de maneira frívola. Puxei como se minha vida dependesse disso, e realmente dependia! Puxei o ar com toda a força que ainda restava em mim. Puxei a vida de volta a meu corpo! E senti. Senti o ar quente entrando em meus pulmões, e a vida de volta a circular por entre minhas veias. A vida se instalou no meu corpo novamente.
Eu me vi sentada num bar, com duas ou três pessoas a minha volta. Nenhuma delas eu conhecia. Estranhei. Disseram que eu me encontrava deitada no chão na rua. O primeiro cogitou ter sido o calor o culpado de tudo. O outro afirmou com convicção que eu não devia ter comido nada durante o dia, e uma voz, vinda lá de trás, disse que com certeza eu devia estar com alguma virose, dessas que vivem circulando por aí. Mas não, eu sabia que não. A culpa era daquela sombra maldita que me quis tomar a vida e por pouco não conseguiu. A culpa era da sombra que gargalhava e brincava de ser eu, enquanto eu mesma, me encontrava num estado de inércia forçada.
Olhei em volta. Passavam das seis, por isso nem sinal de qualquer espécie de sombra.
- Mas que medo me deu de ser eu!
Nenhum comentário:
Postar um comentário