21.3.07

Os cães (conto)




Tem gente que não nasce mesmo com o dom de se comunicar. Desde a infância falam pouco, riem pouco, interagem pouco. Quanto menos contato, melhor. E assim era Lisete.


Devia estar na casa dos 60. Era baixa, forte e tinha cara de poucos amigos. Cabelos castanhos, crespos e sebosos, daqueles que parece que há dias não vêem água. Estava na casa dos 60, como já dito, e isso a proporcionava rugas pela testa, ao lado da boca e dos olhos, além de inúmeros fios brancos que lhe saíam da cabeça. Bochechas caídas. Ar triste e cansado.

Não se casara. Nem filhos tivera. Seu temperamento não permitiria o convívio. Ninguém agüentava. Balbuciava o dia inteiro zanzando pela casa. O que ela fazia durante todo o dia não se sabe. Era aposentada e por isso, limitava-se a sair de seu apartamento para fazer as compras do mês: alguns legumes, leite, carne, produtos de limpeza em demasia e cerca de 40 quilos de ração de cachorro. Sim, ração de cachorro.

Os bichos pareciam ser os únicos a suportá-la, afinal, da sua língua não entendiam mera vírgula. E era essa a mágica da relação. Não se entendiam reciprocamente. Parecia espécie de pacto religioso ou matrimonial: não se pronunciaria uma só palavra.

Os vizinhos faziam da sua existência irrelevante. A mesma morava no mesmo edifício há pelo menos 30 anos e nenhuma palavra dirigia a qualquer morador, a menos que extremamente necessário. E todos se acostumaram ao jeito esguio e fechado da moradora, e a respeitavam.

Um dia, Lisete, num ataque inesperado e improvável de solidão passou a fazer uma brincadeira consigo mesma: olhava para a face de seus cães e os imaginava com rostos humanos. Por exemplo: Meg, uma cachorra vira-lata, branca e marrom, pêlo comprido, e olhos verdes seria uma mulher na casa dos trinta, bem aprumada, olhos verdes, branca, com vestimentas sempre em tons pastéis, altiva e séria. Já Agatha, uma basset baixinha e gordinha (assim como todos os bassets), preta com algumas partes em tons dourados seria uma mulher de 28 anos, gordinha, baixinha, branca, porém gostava de usar roupas pretas com combinações de marrom nas bolsas e sapatos, nariz fino e comprido, e andava rebolando, quase como se desse pulinhos. Uma aparência quase que engraçada para uma mulher.

E assim passaram-se alguns dias. Ela nessa inebriante atividade de dar rostos e personalidades a seus cães. Divertia-se. Pensava em possíveis diálogos com cada personalidade. Brincava. Ria. Cumprimentava os cães ao passar por eles pela casa. E aos poucos, sua casa era habitada por estranhos moradores. Rostos incapazes de pronunciar palavra qualquer. Rostos ambulantes que só a observavam, sem exprimir maior reação.

A brincadeira ganhou expressões maiores, e logo, Lisete não via mais cães, mas sim pessoas que passavam o dia a observá-la.

Enlouqueceu. Mandava que parassem de olhá-la. Queria paz. Nunca gostou mesmo de gente. O que estavam fazendo ali, por sinal? Queriam aborrecê-la? “Quem vos convidou?”, bradava a mesma em voz alta. “O que estão olhando, hein? Rua, rua, rua!” Mas os mais de 12 cachorros, acostumados com a dona, não deixariam o recinto assim.

E fez-se o inferno. A dona vivia aos gritos e resmungos. Não entendia de onde saíram aqueles intrusos que passaram a habitar sua casa sem sua permissão. A simples presença daqueles a incomodava. Olhos. Muitos olhos. E rostos.

Lisete nunca mais dormiu em paz.

3 comentários:

Unknown disse...

:)

Este conto me soou diferente dos outros...
de uma forma que eu não sei bem explicar...
Falta alguma coisa que os outros têm e, por sua vez, possui algo único, só que ainda não identifiquei esse detalhe pra poder dizer...
hehe

Enfim, então entrou na linha dos Contos?
Eu adoro... quando era pequena fazia um sempre a cada banho (imagina a pequena quantidade de água que era gasta... haha).
Beijos!

Paulo Goldrajch disse...

Triste fim de Lisete... não conseguir ver na face de seus cães a imagem de seus verdadeiros amigos...

Tadeu Ribeiro disse...

Ao que Lisete passou a entender a língua de seus companheiros de casa, que bradavam-lhe ofensas cada vez piores e com ela brigavam pela posse da casa...

Amei.
Orgasmos múltiplos.